quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Inclassificável

Nasci num fevereiro de 1974. Certidão de Nascimento: Cor: branca. Nasci na Maternidade Menino Jesus, no centro do município de São João de Meriti. Meus pais moravam no bairro da Vila Tiradentes, dois anos depois, mudaram-se para a Venda Velha, onde embora eu seja pouco visto, mantenho endereço até hoje. No começo dos anos 80, descia o morro no carrinho de rolimã, rua Carioca, aos pés da comunidade do Fumacê (aqui de São João de Meriti). Meus melhores amigos na época pertenciam a uma família de nordestinos e a uma família de negros. Lico, da família de nordestinos. Miúdo, Bolacha, Serginho, Marcinho, Paulinho todos da família de negros. Paulinho, o mais velho dessa família,  colocava uma vitrola na varanda da casa em que eles moravam, ali na metade do morro. Quando, nós que éramos mais novos, terminávamos nossas brincadeiras, já por volta das 18 horas, às vezes passávamos o dia todo ali na rua, brincando, principalmente aos sábados e domingos. Íamos para a varanda, de vermelhão, pois era assim que se chamava aquele piso feito de cimento liso e encerado com cera líquida vermelha. Ali, tinha eu, o primeiro contato com a Black Music, embora a dança nunca tenha sido meu forte, Paulinho nos ensinava sem distinção de cor a novidade: o Breaking. Aprendíamos para que mais tarde em alguma festa, se acontecesse alguma, pudéssemos dançar.
Meu pai era mascate (vendedor ambulante), neste mesmo município, chegara do Espírito Santo em 1947. Minha mãe, dona de casa, nunca frequentara uma escola. A única escola que frequentara, na verdade, foi os canaviais no interior do Estado do Rio, onde era boia-fria. Então ser dona de casa, era um avanço na escala social.
Não conheci bem meus avós paternos, mas os maternos sim: meu avô, trabalhara na usina como carregador de sacas de 60kg de açúcar na cabeça, nas horas vagas: pescador. Quando o conheci só remendava redes por conta de um ferimento na perna que adquiriu prestando serviço à usina. Minha avó trazia a mesma história que minha mãe veio reproduzir mais tarde: era dona de casa, mas já trabalhara na lavoura.
Aqui na Baixada Fluminense, sempre estudei em escola pública, subi o Fumacê para ver mestre Zé Carlos jogar capoeira. Ouvi histórias e estórias das nossas ruas. Vi amigos irem para o tráfico e morrerem, vi amigos não irem para o tráfico e morrerem de alguma forma como vítimas da mesma violência. Sempre percebi, que embora para mim não importasse a cor dos meus amigos, para outras pessoas isto fazia diferença. Percebi cedo que não era distratado nas blitz, que as portas dos bancos não se travavam pra mim, embora estivesse com o bolso cheio de chaves ou de moedas.
Neguei-me ao crime aos 15 anos de idade. E entendi rápido porque uns podiam ter tudo e outros nada, inclusive, muitos brancos sem nada neste lugar. Não sou negro ( a tv mostra isso o tempo todo) mas não sou o branco das novelas. Sei o que é o gueto. Meus amigos de pele escura, com certeza, sofreram e ainda sofrem muito mais exclusão do que eu já possa ter sentido. E ainda bem, que meus pais, embora sem instrução acadêmica, nunca me deixaram contaminar com esta hipocrisia racista que ainda existe em nosso país. Mais importante do que ser branco, preto ou índio é ter consciência de si e do próximo para não perpetuarmos tais “ideologias”.
Lembro-me de meu pai falando que precisava fugir dos fiscais da prefeitura daqui de São João de Mentirinha, isso nos anos 60. Muito pouco ou nada mudou. Assim ocorre com o pensamento discriminatório: pouco ou nada mudou.
Vi um documentário que mostrava um indígena que não pode permanecer nas terras  demarcadas como reservas porque sua esposa era não-indígena. E o que nós somos? E o que somos nós? humanos? Excluímos por tudo e nesta ação infeliz só nos resta a desumanidade. 
Um beijo no coração de todos amigos e irmãos: brancos, negros, indígenas, mestiços e aos marcianos quando quiserem chegar.
Gosto de pensar que não sou nada.
(Renato Aranha)
https://www.youtube.com/watch?v=l4kaPisfVUI