sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Invasão por Renato Aranha. (Crônica da Abolição de Machado de Assis)




Olá pessoal,
Confesso que levo muito tempo para escrever algumas linhas aqui neste espaço que graças ao avanço tecnológico e de mídias é democrático por demais.
 Sempre fui avesso às fardas, embora admirasse a robustez e a rigidez de todo treinamento e toda aquela imagem do destemido, do herói. Confesso que nos últimos dias com toda essa movimentação bélica no Rio de Janeiro com a cobertura em tempo real dos canais de televisão, fico a vibrar, tomado talvez por um impulso cinematográfico, com a invasão da tomada de “nosso Monte Castelo”.  Sabemos que se faz necessário, em algum momento, se ter o domínio de toda esta situação de criminalidade e abuso por parte daqueles que se delegam donos de um território, instituindo desta forma poderes paralelos, literalmente falando.  Mas é importante também que saibamos que nada simplesmente “brotou” nas comunidades, ou mesmo elas, “brotaram” do nada. É importante estarmos atentos de que o poder público, há muito tempo, ausentou-se destes espaços com os serviços sociais básicos e que pouco se fez no que se refere à educação de nossa população carente.  Hoje parece repetição e pieguismo tratarmos deste assunto, mas temos que salientar que não se combate o mal  começando pela consequência (aqui já sem o trema) , “a escada deve ser varrida de cima” mas em todos os níveis, não só do “Inferno Verde” para o Complexo do Alemão, mas da cadeira presidencial até os chefes de seções públicas. Tomamos o Complexo real, físico, geográfico, falta-nos agora tomar o “Complexo”, este mesmo, que está  munido de caneta e que veste terno Armany. Utopia? Pode até ser. Mas toda caminhada começa por um primeiro passo.
Precisamos que o poder público “tome” as comunidades também com educação, também com saúde, e que as comunidades, claro que num passo gradativo, vejam essas atitudes de forma benéfica e não como uma guerra de simples substituição de poder.
Somos um país muito jovem. Temos muito o que aprender sobre democracia e gerenciamento público. Mas isso não nos impede de analisarmos nosso percurso e verificarmos onde cometemos os maiores erros ao longo de nossa curta história de colonização.
Parabenizo, de verdade, do fundo do coração, aos militares que se arriscaram em prol da restituição da ordem. (tenho entre eles alguns amigos pessoais). Eu não a teria feito.
Reconheço que muita coisa já poderia ter sido feita se houvesse vontade política. Se bem que no Brasil, a vontade política na maioria das vezes é motivada por ambição política, o que é grave e perigoso.
            Bem... sabemos o que precisamos e o que queremos: Saúde, educação, livros e escolas, mas acima de tudo: Ética, que vá do pequenino do jardim de infância até nossos deputados e senadores.

Um forte abraço.

Renato Aranha. (“é a Ordem no Caos, é a Rota Espiral”)


Ps: Deixo abaixo a Crônica da Abolição, de Machado de Assis, escrita pouco depois da abolição da Escravatura.
Quem souber ler, que leia!!!!


BONS DIAS!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coupe do milieu, mas eu prefiro falar a minha língua) levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e pediu à ilustre assembéia que correspondesse ao ato que acabava de publicar brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo: fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
— Oh! meu senhô! Fico.
— Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamente. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué dizê nada, não, senhô...
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
— Eu vaio um galo, sim, senhô.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu em casa, na modéstia da familia, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo, tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras: que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Boas noites.
(Machado de Assis – Maio de 1888)